julho 29, 2015

Uma história de Vizinhos



Não havia estrelas visíveis naquela noite.
Todas estavam escondidas, espiando talvez, mas sem se revelarem.
Somente um ponto de luz existia, vindo da ponta de cigarro do homem que caminhava tão devagar que quase parecia dar um passo por minuto somente.
As almas corriam de um lado para outro, em uma agitação desnecessária, já que não podiam ser observadas pelos que passavam nas ruas adjacentes ao lar daquele pobre ser.
Ele não queria chegar em sua casa, mas sem estrelas para observar ou almas (vivas ou não) para conversar, a sua ilusão o empurrava em direção aquilo que chamava de lar, usando o resto da esperança que ainda habitava suas entranhas.
Sozinho, o homem pálido sentou-se no único sofá da sala, em frente a um desatualizado modelo de TV, quer servia para jogar alguma luz na penumbra do recinto, mas não conseguia iluminar a mente do espectador rabugento.
O homem chegou erguer-se do sofá, para pegar alguma garrafa na cozinha que o fizesse esquecer, mas lembrou-se infelizmente que não tinha nenhum elixir que apagasse sua memória, porque a falta de vontade o impediu de abastecer a geladeira. Nem de alimento nem de bebida.
O cigarro já tinha queimado os seus dedos pela milésima vez, mas ele não se importava. Acendeu outro num ato mecânico do vício, sem o prazer que esse vício deveria trazer, só por ser mais um péssimo hábito que não abandonava. Era mais um apertar o gatilho de uma morte lenta do que um vício por assim dizer, já que era isento de qualquer necessidade, vontade ou sentimento em relação ao rolo branco que produzia mais fumaça em seus olhos, evitando a nitidez da realidade.
Ele olhou o porta retrato amarelado. Nem mesmo ele acreditava que aquele sorriso era dele. Nem que o amor lá registrado também já fora dele. Ou a felicidade, se é que um dia ele foi feliz, porque se foi não tinha percebido quão importante era essa sensação.
Ele estremeceu de frio e os poucos fantasmas do passado que lá habitavam, também tremeram com o frio da ausência de medo. Nada havia que podiam usar para assombrar, porque a imagem daquele homem derrotado já era assustadora.
Sem companhia, podia pelo menos aquele ser um lar de almas desajustadas, mas como reunir almas se não há resquício nenhum de vida naquelas paredes? Até os seres do mundo espiritual necessitam de um mínimo de calor para se aproximarem e aquele lar era gélido de emoções.
Mesmo assim uma boa alma descobriu aquele sofrimento no meio da noite sem estrelas. Uma senhora que morava no fim do mesmo corredor simples e de pintura descascada que abrigava várias portas de lares humildes, observou o apagado homem chegar na casa dele, arrastando-se como todos os dias.
Ela se mudara para lá fazia poucos dias, mas o seu senso de observação já havia descoberto a dor daquele homem morando a poucas portas de sua casa.
Ela já estava se preparando para agitar a vida desse homem, já que ela não era de esperar os próximos passos, adiantava-se na vida para que nunca a pegassem de surpresa, estava sempre preparada para o que poderia acontecer.
E dessa forma foi lá, bater na porta para espantar a frieza daquele apartamento. Bateu uma veze esperou.
Dentro da casa, o homem olhou para a porta surpreso, fazia tanto tempo que não escutava uma batida na porta dele, que não estava mais acostumado com o barulho.
Deve ser engano, pensou vagarosamente. E voltou a atenção que não existia para a tela iluminada da TV.
A mulher encostou o ouvido na porta quando ninguém veio atender e confirmou: a TV estava ligada, ele estava lá sim.
Bateu novamente. E de novo. E de novo. Ia chamar mesmo a atenção daquele homem.
E ele, lá dentro, se espantou pela segunda, pela terceira e quarta vez naquela noite. Sim, estavam batendo na porta dele. E com insistência.
O que ele devia fazer? Ignorar novamente ou...
Nova batida na porta. E de novo. E de novo.
Isso fez o homem pular do sofá, ensaiando uma atitude de revolta, afinal quem ousava perturbar a paz que ele não tinha?
Ele abriu a porta, pensando que estava usando de força, mas a falta de vontade dele fez que o movimento fosse mais lento do que ele conseguia perceber.
De pé, do outro lado, estava parada uma senhora com suas roupas coloridas, blusa rosa, saia vermelha, lenço florido na cabeça, chinelos confortáveis também com borboletas bordadas e uma tigela transparente nas mãos. repleta com alguma coisa quente dentro dela.
Ele olhou para ela do seu cinzento mundo, espantado com a profusão de cores das roupas e de sorrisos que ela esboçava no rosto.
- Boa Noite. – sorriu a senhora, estendendo a vasilha em direção ao homem – sou sua vizinha do final do corredor, mudei semana passada e estou contente em conhecer mais uma pessoa que mora aqui. O senhor sabe, nos dias de hoje, precisamos saber quem mora ao nosso lado, nunca se sabe quando um precisará do outro e nessa vida corrida, as vezes a família não tem tempo de visitar os mais velhos, então é bom conhecermos os vizinhos, o senho não acha?
Ainda sorrindo, ela não esperou resposta do homem e continuou falando como estava contente em se mudar, que a casa dela tinha sido vendida, que era melhor morar em apartamento, que hoje em dia morar em casa era perigoso e mesmo parando de tempo em tempo para repetir a inútil pergunta: “ o senhor não acha?” – totalmente desnecessária já que ela não esperava resposta nenhuma e continuava a tagarelar e tagarelar.
Por fim ele estendeu os braços da maneira lenta que era a vida dele e pegou a tigela, sem saber se era isso que deveria fazer, mas supondo que isso era um gesto caloroso da senhora que inundara de repente o momento dele de tantas palavras que ele não conseguia acompanhar.
Ele pegou a tigela e ficou lá, ouvido a mulher, sem saber se já tinha terminado, com toda a dificuldade possível de articular uma palavra sequer como se não soubesse mais como proferir um obrigado, muito menos conseguindo esboçar um sorriso, ato quase impossível para ele.
- Mas o senhor não vai dizer nada? Tem que toamr a sopa quando ainda está quentinha, se tiver um pãozinho, fica perfeito, sabe como é uma sopa gostosa como a que faço merece um paõzinho..... – e ao falar esticou o pescoço para ver dentro do apartamento.
A frieza daquele lugar, a penumbra, o ar de tristeza e simplicidade do sofá em frente da TV, com uma minúscula mesa ao lado e nada mais, chocaram aquela figura colorida e falante.
- O senhor tem colher? – perguntou a mulher, sem perder o sorriso, mesmo com uma lágrima fazendo cocequinhas em seus olhos, pronta para demonstrar a tristeza que a alegria daquela mulher sentiu ao perceber a solidão e pobreza daquele homem.
O senhor só balançou a cabeça simbolizando um não titubeante. Ele não tinha uma colher. Ou se tinha, ele não sabia. Não se lembrava, nem se importava.
A senhora simplesmente puxou-o pelo braço, suave mas sem deixar possibilidade de uma reação. O homem seguiu em sua direção, sem pensar. Ela mesma fechou a porta, deixando a TV ligada junto com a penumbra da casa.
E tagarelando sobre homens não saberem o que precisam ter em uma casa, foi leando o homem em direção a sua casa, falando ainda sem parar, como se as palavras dela fossem necessárias para abrir caminho.
Ela abriu a porta e um mundo totalmente diferente apresentou-se para aquele homem. A TV ligada tinha imagem bem viva, a sala toda arrumada com tapetinhos e cortinas, uma estante com vários retratos e enfeites, um mundo repleto de coisas e mais coisas, que pareciam brincar e dançar em um ritmo de felicidade tão estranha para ele.
Ela soltou o braço do homem, largou-o no meio da sala, espantou o gatinho que subia no encosto da poltrona, fechou a janela cismada com um ventinho gelado, arrumou as cortinas e ainda falando, foi em direção a cozinha fazer alguma coisa que ele não entendeu.
E o homem com sua roupa rota, calça e blusa tão cinzas quanto sua alma, sapatos escuros, ficou ali parado, sem saber para onde olhar de tanta coisa, destoando do ambiente como uma mancha em um lençol branco.
Sem ainda ter tempo de se acostumar, ele se assustou com a entrada esbavorida da senhora, rindo como louca, debochando dela mesma por ter largado o vizinho no meio da sala, com a tigela na mão. Puxou-o novamente pelo braço, pegou a tigela e o levou para a cozinha.
Lá, naqueles poucos  minutos, ela tinha colocado a mesa, dois pratos de uma louça tão branquinha que parecia neve, colheres, colheres ao lado dos pratos de uma prata que parecia serem de uma faqueiro imponente, copo transparente brilhando, uma travessa de pão caseiro e no centro da mesa uma outra tigela de sopa fumegando conforto e sabor.
Ela quase o empurrou para sentar na cadeira, tirou a tigela das mãos dela falando algo sobre aquela sopa já ter esfriado, pegou o prato da frente do homem e serviu com uma generosa porção de sopa caseira, daquelas que aquecem corpo e alma.
Serviu a si mesma também, sentou e começou a tomar a sopa, soprando o calor para compor o que já existia naquela cozinha, tão mais colorida que a sala e que a sua dona.
Coma, coma, falou a senhora, mais de uma vez até que o homem pegou a colher e pegou uma pontinha dela de sopa. Sem saber por que, ele tremia e com dificuldade levou a colher aos lábios, sorvendo o líquido bem devagarzinho.
E ele sentiu pedaço por pedaço do seu rosto se aquecer. A boca encheu de um sabor que ele não reconheceu, mas que teve certeza que era melhor que o gosto do cigarro.
Sem conseguir entender ainda o que a mulher dizia, ele pegou outra colherada, agora com metade da colher de sopa. E depois outra, outra e na quarta ou quinta, já enchia a colher com aquela maravilha.
Ele escutou menos ainda a senhora, só prestava atenção naquele sabor delicioso, na sensação de vida,  no corpo aquecendo. Percebeu que senti fome, uma fome de dias, de semanas. Sugou toda a sopa daquele prato fundo e ficou olhando para o vazio que ficou nele, como se duvidasse que ele já tinha tomado tudo.
A senhora sem aprara de falar, pegou o prato e encheu novamente, enquanto ele segurava a colher como um maestro segura uma batuta para executar a melodia da sua vida. E desta vez colocou uma generosa fatia de pão ao lado do prato.
Ele não hesitou e mergulhou a colher novamente na sopa, quase sem respirar. Quando conseguiu sentir um pouco da sensação de estomago aquecido, pegou o pão e partiu com muito cuidado, colocando um pedacinho na boca, depois outro e outro. Por fim ele mergulhou o pão na sopa e não acreditou que tinha feito isso, mas nada mais importava do que o sabor do pão misturado com a sopa e com a tagarelice da senhora.
Só parou quando se sentiu tonto, de tanta comida e calor que sorveu!
E ele sorriu. Não sabia que estava sorrindo, mas sorriu.
A senhora pegou os pratos para levar na pia, mas ele mesmo tonto pelo estomago cheio, conseguiu se levantar e tirar das mãos dela, levando ele mesmo para a pia e começando a lavar.
Ela falou dos filhos, dos netos, do marido que já era só lembrança, da saudade que tinha do tempo em que ele era vivo e as crianças ainda eram crianças.
Agora ele prestava a atenção e tentava decorar os nomes, quem era quem. Soube que a casa dela foi vendida para fazer parte de um daqueles prédios modernos, que os filhos ficariam com um apartamento mas que ela queria mesmo ficar nesse prédio, mesmo velho, mas que ainda era perto do local onde vivera desde o dia do seu casamento com aquele que fora o amor da sua vida.
E muitas e muitas mais histórias depois, ela resolveu que os dois já estavam cansados, que já era hora de irem dormir.
Acompanhou o senhor até a porta do triste apartamento dele, desejou uma boa noite e voltou para casa, no ritmo dos seus chinelos sacudindo o silêncio do corredor.
O homem entrou, ainda tonto. Olhou para sua casa e lembrou do colorido da casa da senhora. Passeou os dedos sobre o encosto do sofá, sobre as janelas desnudas de cortina, foi até a cozinha com um fogão velho e uma geladeira vazia. Tomou um pouco de água e foi dormir, para sonhar com sopa quente, ainda ouvindo em sua mente a conversa animada da nova vizinha.
Ele não viu, mas sorriu antes de dormir.
No dia seguinte, o cinza da vida dele dominou novamente erro humor do homem, que saiu como todos os dias para andar pelas ruas do bairro, sem encarar ninguém, cabeça baixa, só contando o tempo que passava lento.
Voltou para casa no mesmo anoitecer ainda sem estrelas, espantou novamente as almas perdidas da rua e entrou em sua casa, ligou a TV, jogando-se no sofá.
Meia hora depois, batidas na porta. E de novo. E de novo.
Ele não titubeou nem pensou que era engano dessa vez, abriu a porta e lá estava a vizinha com uma blusa amarela, saia marrom, os mesmos chinelos de borboleta,  parada na porta batendo o pezinho, esperando ser atendida.
Mil palavras ao mesmo tempo, um novo arrastar pelo braço, a sala colorida que o abraçou, o convite para sentar, um prato de macarrão, um queijo bailando sobre a  massa e mais mil histórias para serem contadas.
Tudo se repetiu, a fme que apareceu e depois sumiu, lavar a louça, mais detalhes da história da vizinha, assistir a novela, a mulher conversar pelos dois e mais uma noite se passou.
E se findou do mesmo jeito, com sonhos de pratos cheios, gatos gordos e cortinas coloridas.
Durante o dia a rotina das ruas, mas a cada dia algumas descobertas, a praça com um parque e crianças rindo, pessoas diferentes e alguns sorrisos no rosto do homem.
A noite, cada uma que se passava, parecia ter de volta as estrelas, que se acendiam aos poucos, uma a uma, conforme a amizade daquelas duas pessoas cresciam regadas por sofás, pães, bolos, macarrão, arroz, batata, louça, histórias, cores e vida seguindo.
O senhor estava lá quando o neto da vizinha se formou, quando a filha se mudou para o apartamento novo, quando todos viajaram de férias para fora do país, quando os filhos dela ficaram tão ocupados que não a buscavam mais para os almoços de domingo (os quais acabaram se transformando em uma extensão do jantar entre vizinhos), quando os netos começaram a namorar, quando as visitas semanais se tornaram mensais e depois somente em datas festivas.
Ele também estava lá quando ela soube que nas festas de fim de ano nenhum filho ou neto estaria por perto, quando a ultima irmã da senhora, aquela que morava lá longe em outro estado, veio a falecer.
Em todos os momentos, o vizinho estava lá, vendo a vida passar, as coisas acontecerem como deviam e não deviam acontecer.
Mas nunca o senhor viu a sua vizinha parar de sorrir, mesmo quando ela chorava. E de falar, além agasalhar tristeza e comemorar alegria com alguma comida.
A casa do homem não era muito melhor que antes, mas estava arrumadinha na medida do possível. Ela não deixava que a vizinha mudasse a sua austeridade, preferia compartilhar a alegria e colorido na casa dela. O apartamento daquele senhor ainda era um mausoléu, um túmulo de uma história que ele nunca contou, com aquele único porta retrato que desafiava o tempo, mantendo um casal sorrindo, abraçados por um pequeno menino.
A vizinha imaginava a história triste por trás do retrato e do apartamento do senhor, mas nunca perguntou sobre isso. Ao invés de dividir a tristeza dele, ela preferia dividir a alegria dela.
O homem ficou doente, sarou, engordou, ficou doente novamente. E nunca havia ninguém além da vizinha, para visita-lo. Até que ele ficou muito doente, emagreceu, mesmo mantendo a dieta de quitutes da vizinha.
Nenhum deles falava sobre isso. As conversas quase sempre unilaterais, eram só sobre casos e histórias que a vizinha contava, repetia, angariava na vizinhança, mantendo sempre um bom estoque de assunto.
O vizinho não se recuperou, mas mesmo indo ao médico por insistência dela, não contou o que o mantinha doente.
E os dias iam passando, até que além das estrelas que apareceram, das almas que iam buscar um bocadinho de prece que a vizinha fazia questão de espalhar pela casa dela (e por todo prédio, diga-se de passagem), uma visita se fez presente. A morte descobriu aquele endereço e veio buscar um passageiro para a vida eterna.
O senhor voltou do seu habitual passeio pelas ruas, trazendo para assombro da vida, uma maço de flores silvestres nos braços. Ele soube na noite anterior que hoje era aniversário da vizinha e que ninguém da família dela viria comer um pedaço do bolo que ela com certeza faria, então ele seria o companheiro do bolo, levando as flores para alegrar a amiga que conquistara por um milagre da vida. Ela não ficaria sozinha, nem ele. Escutaria as histórias dela, repetidas na maior parte das vezes, mas que seriam sempre motivo para ela sorrir e sorrir.
Ele chegou no andar da casa dos dois vizinhos e depois de tanto tempo, foi ele que foi até a casa da vizinha, bater na porta.
Bateu uma vez e esperou.
Ninguém. Nenhum som.
Bateu de novo. E de novo.
Sentiu uma dor no peito que não entendeu, curvou-se e apoiando-se na porta da vizinha, derrubou as flores.
A dor passou... ele percebeu um vulto e uma lágrima finalmente rolou pelo seu rosto.
Abriu a porta que nunca tinha ficado fechado para ele e viu a vizinha com a face sem cor, pela primeira vez em sua vida.
Parecia dormir, tão tranquila e serena. A TV estava ligada, com som bem baixinho.
Por força do hábito, ele foi até a cozinha. Em cima da mesa, o bolo de aniversário, uma jarra de suco e dois pratos brancos como a neve.
Ele sorriu. E chorou.
Pegou o telefone e ligou para o número que estava marcado na capa de um caderno ao lado.
Ouviu a voz do filho e contou que a mãe morrera. Desligou sem dizer quem era.
Foi até a amiga, curvou-se e beijou sua testa, murmurando um obrigado.
Voltou para o seu apartamento, ligou a TV e jogou-se no sofá. E esperou a Morte, que  bateu na porta quando chegou. E de novo. E de novo.









Um comentário:

  1. Boa tarde!Li apenas duas historias e estou realmente emocionada,parabéns você é sem duvida uma pessoa iluminada que evoluiu.bjs no seu coração.

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