Em um algum lugar do Universo, nesta ou em outra dimensão...
- Não, definitivamente não vou compactuar com isso, é um
absurdo – esbravejou Buck, enquanto andava de um lado para outro, mal contendo
a sua reprovação.
- Mas por que tanta revolta Buck? É só uma proposta que já
faz tempo que queria colocar em votação. – observou Tash, enquanto observava a
explosão emocional de Buck, tão famoso pela sua conduta tranquila mesmo diante
das piores crises que já enfrentaram.
Tash se mantinha apoiada ao balcão e por nada neste mundo
interromperia a caminhada agitada do Diretor de Despachos. Só queria tentar
entender o porque de tanta revolta.
- Você não consegue entender? Nunca... eu disse NUNCA em meu
comando, o trabalho foi paralisado, e olha que já enfrentei várias catástrofes
naturais, já vi a terra tremer e os prédios caírem, mesmo assim NUNCA paramos o
serviço.
- E o qual foi o resultado? Apenas mais trabalho! Em cada catástrofe
ou problema que você superou e despachou sua equipe para cumprir as missões,
mais ainda ELES ficaram dependentes de nós.
- E qual é o mal nisso? – perguntou Buck, em tom baixo
agora, mas ainda raiovoso, espumando de raiva a poucos centímetros de Tash.
- O mal? Ora, o que sempre falo: ELES não evoluem.
Simplesmente depende de nós em seu mudismo. Somos a voz deles, expressamos os seus
sentimentos, as suas vontades, as duas dúvidas – sem perceber Tash começou a
elevar a voz, enfatizando cada palavra de uma forma que parecia fala com uma
criança desatenta, batendo na mesa a cada frase, o que a fez perder algumas
penas nas batidas.
Buck ignorou as penas voando, as batidas na mesa, o tom de
voz de Tash. Ele só queria continuar o trabalho, adorava o seu serviço, a
rotina, amava ver seus colaboradores erguerem vôo, com as asas abertas. E
queriam tirar isso dele. Absurdo!!!
Lançando um olhar de ódio para Tash e para o relógio no
saguão, ele resolveu guardar o fôlego para expor sua posição na frente do Alto
Conselho, não perderia mais tempo com Tash.
Ele abriu as asas e seguiu em direção ao alto do prédio,
deixando Tash boquiaberta com sua atitude rude e desnecessária. Mas era Buck,
ele sempre achava que podia bater portas, asas ou cabeças, contanto que o
trabalho estivesse em ordem.
Diretor de Despachos. Buck controlava tudo, horário de
saída, quais mensagens levaria cada um dos pombos correios a seu serviço,
mapeava os voos, escolhia rotas e vibrava a cada mensagem entregue.
Tash era a Diretora de Eficiência. Não controlava os voos ou
as mensagens, apenas agilizava para que cada pombo correio tivesse o necessário
para cumprir sua tarefa. Rações extras para viagens longas, reposição de
suporte de mensagens, cuidava até dos aposentos de cada um, para que os pombos
que voltassem de suas entregas pudessem descansar e se recuperar até a próxima
missão.
E de tanto observar o ir e vir, as missões, as mensagens que
cada um carregava, começou a perceber que estavam em um círculo vicioso. Anos e
anos prestando tal serviço e nada mudava. Zero de evolução, apenas rotina e
nada mais.
Era nisso que ela pensava quando chego na Sala de Reuniões
do Alto Conselho. Buck já estava lá claro, agitado e agitando. Todos os
Diretores estavam lá, falando alto e discutindo suas opiniões, em uma
barulheira ensurdecedora.
Tash resolveu esperar. Não ia se cansar em debates inúteis. Mas pouco tempo depois a corneta que anunciava
a chegada do Alto Conselho silenciou o ambiente e todos rapidamente se colocaram
em círculo, ao redor dos três poleiros dourados, que seriam usados pelos
Anciões que compunham o Alto Conselho.
Calmamente os três mais velhos pombos entraram, com sua capa
vermelha cobrindo as penas escassas e trazendo em seus bicos a Trindade da Lei.
Buck amava a Trindade da Lei. As três partes das regras
básicas do clã dos pombos correios estavam registradas em lindas folhas de
papel tão fino quando uma pena de um recém-nascido, escrita em caligrafia antiga
que somente os pombos letrados compreendiam. Toda vez que o Alto Conselho se
reunia, cada Ancião trazia sua parte e exibia pendurada no seu respectivo
poleiro, para o caso de qualquer dúvida que surgisse sobres a Lei. Às vezes os
Anciões apenas reuniam os pombos para reler as regras, mantendo vivas na
memória de cada um.
O primeiro a falar foi o Ancião da Vida, que trazia a parte
da Lei que rege a união perpétua entre os pombos, como deveria ser a criação
dos filhos, como tratar cada pombo desde o seu nascimento até a sua velhice.
- Tash pediu esta reunião, como Ancião da Vida, ofereço a
palavra.
Sem pestanejar Tash se adiantou e colocou-se ao lado do
poleiro desse Ancião.
- Por centenas de anos somos os mensageiros dos humanos.
Recebemos suas mensagens e entregamos a quem de direito. Dia após dia. Sem
cessar, sem mudar. Eu proponho que nosso trabalho não seja mais somente o de
mensageiros. É hora de ensinar aos humanos a se comunicarem por si só.
O silêncio na sala de reunião veio abaixo em um instante.
Parecia que um saco de alpiste havia sido jogado do alto no meio dos pombos que
ali estavam. Uma grande balbúrdia abalou tudo e a todos.
Somente os Anciões ficaram calados. Tash e Buck discutiam
diretamente um com o outro, enquanto o grupo ali reunido se dividia em prós e
contras, sendo que nitidamente os contra eram em maior número.
Não havia acordo, não havia coerência, somente caos e
gritaria.
O segundo pombo membro do Alto Conselho, o Ancião da
Recompensa, que trazia consigo a parte da Lei que rege o que cada um deve
receber durante a Vida, seja de alimento, seja de tarefa, seja de pagamento
pelo serviço prestado. Ergueu um voo meio titubeante, mas certeiro em seu
destino, acertando o sino suspenso acima dos três poleiros dourados.
O silêncio voltou para a sala. Quando O Ancião da Recompensa
se manifestava, ninguém recusava ou reclamava do que estava recebendo. E agora
todos recebiam a ordem do silêncio, emanada pelo som do sino.
- Buck é quem se opõe a idéia de Tash, eu, o Ancião da Recompensa
dou-lhe a palavra.
- Sim, como disse Tash, por centenas de anos somos nós, os
pombos correios, que fazemos a parte de colocar em contato os diversos humanos
que vivem no planeta. Essa é nossa tarefa, desde que nasceu o primeiro pombo
correio, tão honrada e tão importante, que somente a nossa raça consegue
cumprir. Não nascemos para ensinar, isso faz parte da tarefa das corujas,
nascemos para manter a comunicação entre os humanos. Impossível quebrar esse
destino, seria esvaziar o que somos, virar as costas para tudo que fizemos até
hoje.
Muitas asas foram erguidas ao alto, provocando uma ventania
dentro da sala de reuniões, balançando até as três partes da Lei penduradas em
cada poleiro.
- Para toda eternidade? – gritou Tash. Levaremos mensagens
para toda eternidade? O humano nunca irá se comunicar por si só?
Buck inflou o peito e gritou em plenos pulmões:
- Os humanos são mudos!!!!! Não sabem falar. Não se
comunicam!! O que você quer, destruir a humanidade??? Loucura, isso sim,
loucura.
- Eles não falam porque é conveniente, dizem as lendas que
eles falavam antes de por necessidade, resolveram inventar a escrita e os
primeiros pombos correios, tolos e inocentes, se prontificaram a levar suas
mensagens escritas. – retrucou Tash – Está na hora de ensinar novamente aos
humanos a falar e assim, a se comunicarem por si mesmos.
- E o que será de nós? - pergunto Lino, Diretor de
treinamento de Voo.
- Será o que quisermos – respondeu Tash. O que quisermos.
Não servindo, mas criando, inovando ou só voando sem destino.
Buck levou um susto tão grande com essa afirmação da Tash,
que voou para cima dela, asas abertas, como se enfrentassem uma raposa ou um
perigo tão grande que nada mais restava do que atacar.
Os dois se bicaram, gritaram, voaram, até o sangue aparecer
nas penas.
E novamente o terceiro Ancião interveio. Ele voou até o
Grande Tambor e se jogou em direção a ele, fazendo ecoar um estrondoso
rimbombar, tão alto que todos olharam para o velho pombo, acreditando que ele
não resistiria ao choque.
Mas para surpresa de todos, o Ancião do Destino voltou ao
seu poleiro, como se nada tivesse acontecido.
- Por décadas fomos a voz dos humanos. O Ancião da Vida
sabia que não tinha o ensinamento da Eternidade; O Ancião da Recompensa sabia
que podemos colher aquilo que é reflexo de nossas escolhas, mas não tinha o
ensinamento de quando parar de buscar recompensas. E eu, Ancião do Destino, sei
que nós é que nos colocamos nessa situação, mas que um dia chegaria o momento
de decidir, mas não tenho o ensinamento de compreender essa situação. É hora de
mudanças, porque despertou nos corações a dúvida.
Não houve manifestação. Buck abaixou a cabeça, sabedor de
que em sua mente já havia percorrido o pensamento de não saber realmente o que
essas mensagens levavam dentro de si.
Tash chorou. Era isso, as mudanças aconteceriam, mas isso
não quer dizer que ela queria. Era confortável viver assim, pelos outros, viver
por si era uma tarefa muito difícil.
E o Ancião do Destino continuou:
- É hora de mudar o destino. Ao invés de fazer, de levar a
mensagem, ensinaremos o humano a falar.
Se repetirmos as palavras em seu
coração, ele irá querer dizer e não dependerá de outros para expor seus
sentimentos. É hora de olharem uns nos olhos dos outros e descobrirem que não
precisam de nós para chegar até o outro.
- E o que será de nós? – perguntou Buck, com voz quase inaudível.
- Viveremos – respondeu o Ancião da Vida.
- Buscaremos – respondeu o Ancião da Recompensa.
- Encontraremos... a nós mesmos. – completou o Ancião do
Destino.
Dito isso, os três anciões pegaram sua parte da Lei e voaram
tão alto que se transformaram em pontinhos no céu. E lá do alto, soltaram as
três partes da Lei, que foram levadas para longe pelo vento.
E os pombos correios pararam de levar as mensagens. Foram construí
estradas, construir novas cidades, foram viver suas próprias vidas.
E o humanos?
Quando descobriram que não tinham mais pombos para levar
suas mensagens, sentiram-se perdidos por um tempo, mas encontraram Tash que
começou a ensinar aos humanos a falar.
Buck organizou o seu próprio serviço de mensagens, levando
ele mesmo o que os humanos queriam dizer, mas ele era um só para tantos e certo
dia se perdeu no meio de uma tempestade, com a âncora do passado pesando demais
para suas asas. Nunca mais foi visto, porque quem não quer mudar, fica para
trás e se perde na solidão.
E assim extinguiu-se o serviço de pombo correio. Ficou
obsoleto naquele mundo de tantas conversas.
Quem sabe um dia, neste nossa dimensão, também as pessoas voltem
a falar umas com as outras, sem precisar de intermediários para interpretar o
que queremos transmitir, sem artifícios ou disfarces.
Mas se algum dia um pombo correio vier a falar com você,
preste atenção, não escreva uma mensagem, mas divida com ele suas experiências,
enquanto ainda há Vida, enquanto ainda pode receber Recompensas pelo que sentem
e faz e enquanto o Destino não veio cobrar sua participação final.
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